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Coronavírus no Maranhão: casos de covid-19 se multiplicam e pobreza dificulta combate à doença

O maranhense Edson Pinheiro dos Reis, 51 anos, trabalha todos os dias há mais de 30 anos na feira do bairro de Fátima, próximo ao centro de São Luís (MA), onde vende carnes no açougue que funciona em uma das 100 bancas no local. Por ali, em tempos mais normais, estima-se que circulam em média 5 mil pessoas por dia.

Mas, nas últimas semanas, apesar de amar o trabalho que faz, Edson diz que preferia não ir. Está assustado desde que soube que dois colegas de feira já morreram infectados pela covid-19, doença que já matou mais de 5.901 pessoas no país e 166 só no Maranhão. Se não tirasse da feira todo o sustento da sua família, diz Edson, optaria por ficar isolado em casa, onde vive com a mulher e duas filhas.

Passou a usar máscara, luvas e a lavar as mãos muitas vezes por dia. Até colocou uma plaquinha informando que só atende quem estiver de máscara. Mas diz que, ainda assim, se sente inseguro. “Vou porque preciso, mas vou morrendo de medo”.

Em Coroadinho, polo de comunidades com população estimada entre 59 mil e 100 mil habitantes e considerado uma das maiores favelas do país, a pedagoga Christiane Teixeira Mendes sente o “coração despedaçado” desde que precisou, há cerca de um mês, explicar aos alunos da escola e projeto social que ela mesma fundou que não podia mais abraçá-los, por tempo indeterminado. No bairro de Coroadinho, já foram confirmados 36 casos de pessoas infectadas pelo novo coronavírus.

Morando com a mãe diabética de 60 anos, o irmão asmático, a irmã e o cunhado, Christiane, 36 anos, tem se desdobrado para arrecadar e distribuir doações de cestas básicas pelo bairro, já que sabe que muitos dos seus alunos dependiam da merenda escolar para se alimentar. “Dói não poder abraçar meus alunos. Expliquei que estamos passando por um problema muito sério e que a gente só pode bater o cotovelo. Para eles entenderem na cabecinha deles que a tia continua amando eles de coração”.

O médico Marcos Adriano Garcia Campos, 25 anos, antecipou de maio para abril sua formatura em medicina pela Universidade Federal do Maranhão para reforçar o atendimento durante a pandemia. Desde então o médico, que cresceu e mora até hoje em Coroadinho, trabalha em dois postos de atendimento na Vila Luizão e outro na Liberdade, bairros da periferia onde já há, respectivamente, 105 e 46 casos confirmados de covid-19.

“Nesses bairros mais vulneráveis, a questão econômica tem sido muito sentida. Às vezes a gente prescreve um medicamento e o paciente diz que não tem dinheiro para comprar porque aquele dinheiro vai ser usado para comprar comida, e não remédio”.

Os relatos acima são exemplos de como, na periferia de São Luís e de outras capitais pelo país, a pobreza e as condições precárias em que vive a população têm atrapalhado bastante as estratégias de combate ao novo coronavírus.

No Maranhão, em que vivem 6,8 milhões de habitantes, as dificuldades são ainda mais gritantes: é o Estado do Brasil com a maior proporção da população vivendo em situação de pobreza, segundo dados Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

54,1% dos maranhenses vivem com menos de R$ 406 por mês; além disso, mais de 81% não têm acesso a saneamento básico adequado, contra a média nacional de 35,9%. Para 29,2% dos maranhenses, não há abastecimento de água tratada.

Fazer home office tampouco é opção na realidade do Maranhão. O Estado tem o maior percentual do país de trabalhadores informais — são 64,9% dos trabalhadores ocupados, segundo dados de 2018. De acordo com o governo do Estado, só 300 mil pessoas têm plano de saúde no Maranhão, em uma população de quase 7 milhões de pessoas.

Na noite de quinta-feira, a Justiça do Maranhão decretou o bloqueio total, ou lockdown, em quatro municípios da Região metropolitana de São Luís: São Luís, São José de Ribamar, Paço de Lumiar e Raposa. A decisão vale pelo prazo de dez dias, a partir do dia 5 de maio, atendendo a uma ação do Ministério Público do Maranhão. Nesse período, ficarão suspensas todas as atividades essenciais à manutenção da vida e da saúde, com exceção de serviços de alimentação, farmácias, portos e indústrias que trabalham em turnos de 24 horas.

‘Sabíamos que quando chegasse na periferia não ia ter controle’

Na última semana, desde o dia 23 de abril, o ritmo das mortes no Estado acelerou e passou a crescer em dois dígitos, registrando mais de dez óbitos por dia. Só na quinta foram 21 mortes.

Acredita-se, no entanto, que a situação é ainda pior. Testando apenas os casos graves que demandam internação, o próprio governo do Estado estima que o número de casos seja muito maior do que indicam os dados oficiais.

“Tem um número muito grande de casos subnotificados. A impressão que a gente tem é de que a cidade inteira está doente. Principalmente nos últimos 15 dias, quando passamos a ter mais de 150 casos confirmados por dia”, afirma o secretário de Saúde do Maranhão, Carlos Lula, que relata a grande dificuldade em atender à demanda por leitos de UTI, apesar do grande esforço do governo.

“Por mais que eu abra mais UTIs, eu não tenho condição de receber 80 novos pacientes por dia. Nós alugamos um hospital privado inteiro que estava fechado; inauguramos um hospital público que terminamos em um curto espaço de tempo. Eu estou alugando mais dois hospitais privados e finalizando a obra de um público”, conta o secretário.

Na noite de quinta (30), a secretaria informou que 77,6% dos 161 leitos de UTI da capital e 58,4% dos 351 leitos clínicos estão ocupados atualmente com casos de covid-19. A ocupação já chegou a 100%, mas o governo corre contra o tempo para abrir novas unidades e evitar que pacientes graves fiquem sem atendimento. Nesse caso, chamado de colapso do sistema hospitalar, o risco é de que muitos pacientes morram com falta de ar e dificuldades respiratórias, sem acesso a respiradores.

A secretaria informou que, nas estratégias de combate ao novo coronavírus, realizou a expansão de 735 leitos exclusivos — 230 leitos de UTI e 505 leitos clínicos — e ainda seguem em ampliação.

“Está prevista, ainda para a próxima semana, a abertura de mais 130 leitos exclusivos na rede estadual de saúde para a capital, que apresenta uma taxa de ocupação hospitalar mais acentuada”, disse Lula.

Diante da escalada dos casos, o governador Flávio Dino (PCdoB) havia declarado a intenção de endurecer as regras de circulação de pessoas na Ilha de São Luís, que inclui os municípios de São Luís, Paço do Limiar, Raposa e São José de Ribamar.

Começo nas áreas mais ricas, avanço nas mais pobres

Embora os primeiros casos de coronavírus do Maranhão tenham sido registrados em bairros litorâneos considerados de elite em São Luís, atualmente, dos dez bairros da capital com mais casos de covid-19, quatro são considerados vulneráveis: têm baixos índices de saneamento, baixa renda e altos indicadores de violência. “E já já eles vão estar entre os primeiros, porque eu tenho subnotificação”.

“A gente sabia que quando chegasse na periferia a gente não ia ter controle sobre a doença. Porque a condição de higiene é inadequada, a pessoa não vai ficar em casa. Não adianta eu pedir para ela ficar em casa, que ela não fica”, afirma o secretário, que diz que, mesmo medidas de fiscalização policial não têm surtido o efeito esperado. Nas periferias, o comércio reabre assim que a “batida” se afasta.

O secretário defende que, no combate ao coronavírus no Brasil, é preciso ponderar e discutir como lidar com o enorme peso da desigualdade social. “O discurso do ‘fica em casa’, ele é muito simples para a Itália, para a França, para os Estados Unidos. Mas como eu vou falar para a pessoa ficar em casa aqui, sabendo que ela mora em um cômodo com seis ou sete pessoas, dormindo no mesmo colchão? Que tem um colchão para dormir o pai, a mãe e dois filhos? A gente está sofrendo hoje as consequências de termos falhado enquanto sociedade”, diz.

As feiras, foco descontrolado de transmissão

No dia 5 de abril, quando o Maranhão já tinha 37 casos confirmados do novo coronavírus, imagens compartilhadas por moradores de São Luís nas redes sociais mostravam uma multidão fazia compras, aglomerada e sem máscara, para a Sexta-Feira Santa no Mercado do Peixe, na avenida Beira-Mar.

A BBC News Brasil ouviu, desde aquela data, relatos de funcionários dos mercados e feiras da cidade que diziam que vários feirantes já apresentavam sintomas da doença, sem parar de trabalhar ou adotar medidas de prevenção, tratando a doença como uma “virose” simples. Na imprensa local, reportagens apontam há anos para a precariedade das condições de higiene, segurança e infraestrutura em diversos desses mercados e feiras da cidade.

Antonio Augusto Moura da Silva, médico epidemiologista e professor titular do departamento de Saúde Pública da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), diz que, embora os indicadores de pobreza no Maranhão sejam menores do que eram há 30 anos, a vulnerabilidade social de grande parte da população do Estado pode se sobrepor aos fatores desfavoráveis ao vírus, como o clima quente do Maranhão.

A experiência do Brasil, um país continental, tropical e muito desigual, será importante para mostrar à ciência como o novo coronavírus avança diante de tais peculiaridades, que não eram tão expressivas em países mais ricos da Europa e Ásia, por exemplo, afirma o epidemiologista.

“O governo federal tem sido muito lento no sentido de amparar essas pessoas mais vulneráveis. Essa ajuda de R$ 600 está chegando de forma muito pingada. E acho que isso explica porque, nos bairros mais pobres, não é que a população não queira se isolar, mas ela tem muita dificuldade de fazer isso, porque a necessidade dela de sobrevivência é muito mais premente”.

“A gente só vai poder responder essa pergunta, se a pobreza vai ampliar a disseminação do novo vírus, quando a gente vir a epidemia se desdobrar nos próximos meses. Porque na verdade o Brasil está nas fases iniciais ainda, subindo a montanha, subindo o pico. Realmente é muito preocupante”.

O sanitarista e professor emérito da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Paulo Buss, diz que o foco das estratégias públicas para combater a covid-19 em favelas e bairros de alta vulnerabilidade social é trabalhar junto com a própria comunidade, que conhece as prioridades e desafios de cada território.

“A gente fala de favela no Maranhão, no Rio e em São Paulo como se fossem a mesma coisa, mas não são. Que as unidades dos SUS utilizem, para a estratégia, a realidade de cada comunidade, compondo as regras com a ajuda da própria comunidade, que em geral têm uma organização social tremenda.”

Falta de água e produtos de limpeza

A bombeira civil Dalva, 41 anos, também mora em Coroadinho, e diz que vê muitas famílias em desespero porque pararam de trabalhar. “Como eu moro aqui, a gente acaba vendo a situação das famílias mais carentes, que começa a faltar as coisas para as crianças, o clima está pesado. Principalmente aqui na área mais carente de Coroadinho, que é uma invasão e as casas ainda são feitas de taipas, lá estão passando muita necessidade. Está faltando principalmente material de higienização.”

Preocupada e solidária, Dalva passou a arrecadar óleo usado e outros materiais para fazer sabão e sabonete para distribuir aos vizinhos com mais necessidade. “Como eu estou sem trabalhar, voltei a fazer sabão e sabonete para ajudar essas famílias”. Na Páscoa, ela visitou algumas dessas famílias mais carentes para distribuir ovos de Páscoa arrecadados por voluntários da comunidade. Para muitas crianças, foi a primeira vez que ganharam o presente.

A bombeira também está sem receber salário, mas diz que, antes da pandemia, havia conseguido juntar algum dinheiro para sobreviver. Morando sozinha e sem pagar aluguel, diz que sua despesa é muito pequena, então sobra para ajudar. “Saí distribuindo para a minha família e postar nas redes sociais. Daí a Christiane viu e entrou em contato comigo, perguntando se eu podia ajudar na distribuição. A gente acabou se ajudando.”

Casas lotadas e pouco espaço para distanciamento

O médico Marcos Adriano, que atende na periferia de São Luís, diz que o maior desafio no atendimento tem sido o de recomendar o tratamento em casa, com medidas que envolvem, principalmente, higienização das mãos e distanciamento social.

“Quando a gente passa, por exemplo, a orientação do ficar a uma certa distância dos seus familiares, ficar a um ou dois metros, como é que você aplica isso em uma casa que tem só dois cômodos e em que moram sete pessoas, dormem quatro pessoas em uma só cama? Isolamento domiciliar é inviável em algumas situações, especialmente dessas famílias mais carentes”, diz. Uma das estratégias adotadas, diz o médico, tem sido o de fazer uma busca ativa por pacientes com sintomas por meio dos agentes de saúde, para avisar à equipe médica do bairro e evitar que familiares continuem a infectar os outros na mesma casa.

O mototaxista Eugênio Lemos, 45 anos, passou mais de cinco dias sentindo febre, fraqueza, dor de garganta e dor nas costelas sem conseguir atendimento no serviço público de saúde. Foi mais de uma vez mandado de volta para casa sem sequer receber a senha para atendimento.

Quando foi atendido, diz que foi orientado a voltar para casa após medirem sua pressão. Dias depois, o diagnóstico clínico e uma tomografia confirmaram que tinha covid-19. Isolado em casa há quase um mês, ele perdeu a renda das corridas e a família vive apenas com a renda da aposentadoria da mãe no bairro planalto Anil I, que já tem mais de 14 casos confirmados. Passa o dia isolado no quarto. “A parte mais difícil foi nos primeiros dias, que senti uma queda de pressão e uma falta de ar forte. Pensei que não voltaria mais a respirar.”

A pedagoga Christiane trabalha na Associação Núcleo de Educação Comunitária de Coroadinho, que hoje inclui uma creche, uma pré-escola e cursos profissionalizantes que atendem 250 pessoas. Todo o atendimento do projeto está suspenso, e hoje ela participa do comitê Coroadinho sem Corona, que coordena a arrecadação e distribuições de doações, além de compras de insumos dos comerciantes locais.

Ela explica que o bairro, que faz parte do grupo G-10 das Favelas, reúne cerca de 30 comunidades, entre quilombos e invasões, e enfrenta dificuldades variadas. “É muito difícil trabalhar aqui dentro. Temos muitos morros e encostas, então temos construções com perigo de deslizamento, com perigo de alagamento. Na parte da palafita, (temos)um pessoal que mora bem perto da margem do rio, que transborda. Temos casas sem energia, casas de pau a pique e folhas de jussara. A maioria das partes do bairro não tem água, e algumas têm em dias alternados”, relata.

Christiane diz que manter a higiene das mãos sem água e em casas lotadas é praticamente impossível. “Eu vejo aqui pela minha casa todos têm o seu cômodo, mas ninguém tem porta. Eu tenho família de aluno meu que tem 11, 14, 20 pessoas em uma mesma casa e são dois cômodos, isso quando não é um cômodo só.

Trancar ou não trancar?

Dois dias antes de a Justiça decidir pelo lockdown em São Luís, o secretário de Saúde Carlos Lula disse à BBC News Brasil que a medida estava em estudo, mas que seria muito difícil de implementar em razão da baixa adesão da população ao isolamento social. Cogitava, inclusive, a realização de um censo para apurar, de maneira mais realista, o número de infectados no Estado.

“É uma realidade dura que a gente não vai combater com polícia. Imagina prender o idoso que está vendendo caranguejo no meio da rua, o que vai me adiantar a polícia dizer não, vai lá, fica em casa. O discurso do ficar em casa, se não tiver o mínimo de adesão, não tem eficácia”, lamenta o secretário.

”Principalmente nas áreas mais pobres da cidade, é como se nada tivesse mudado. E lá a feira e o comércio é tudo junto. Então por mais que a gente faça batida com a vigilância, com a polícia, a  gente vai, faz, e de tarde eles já voltam à atividade normal como se nada tivesse acontecido. Quando a gente pega o depoimento desses pessoas eles vão dizer assim: não, eu não posso ficar em casa, porque a gente vai morrer de fome’. O maior percentual da população com trabalho autônomo informal no Brasil é o Maranhão. Então são pessoas que se ficarem em casa não vão ter nenhum tipo de renda”, prossegue.

“Eu posso decretar o lockdown na cidade. Mas a gente se pergunta: é aí? Quem é mesmo que vai cumprir essa medida? Nós não vamos colocar a polícia batendo em todo mundo, fazendo as pessoas voltarem para dentro de casa. Não funciona. Então tem um problema gravíssimo, social, que eu não posso responsabilizar o indivíduo porque falhei como sociedade. Eu tenho um problema de direito à saúde que não pode ser convertido no dever individual de cumprir regra sanitária nesse momento.”

 

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